Refúgio
Aquele era o seu refúgio. Quando se aborrecia de estar em casa, dirigia-se para ali, aquele bocadinho de terra que lhe tinha calhado em herança, situava-se à beira de um ribeiro e durante todo o ano corria um leito de água transparente. Por momentos, sentava-se na sua margem e perdia-se a ver a água deslizar formando pequenas ondas de espuma que logo se desfaziam. Quando estava sol e este batia diretamente na água corrente, ela brilhava como fios de prata saltando por cima das pedras já polidas e gastas pelo tempo. Ficava ali a ver e perdia-se em devaneios.
Naquele bocadinho de terra macia e de bom trato, plantava os morangueiros, as alfaces, algumas couves e tinha sempre salsa, coentros e hortelã, às vezes também deitava umas sementes de cenouras, mas as cenouras demoravam muito tempo a desenvolverem-se e muitas das vezes vinham tortas e com formas esquesitas.
Sentia-se bem ali, nos pés trazia sempre um par de tênis velhos, muito velhos ou botas de borracha, vestia igualmente uma roupa também sem graça e fora de moda, nas mãos trazia sempre luvas de borracha que por vezes se rompiam e deixavam sujar e estragar as unhas e as mãos, à noite compensava com camadas de creme hidratante. Por vezes as costas doíam-lhe mas uma noite de repouso e estava pronta para outra.
Aquele bocadinho de terra fazia parte da sua alma, era o seu refúgio. Quando ali estava, era só mesmo ali que estava de corpo e alma.
Hoje estava neste seu refúgio quando ouviu algumas badaladas espaçadas do sino da igreja da aldeia. Pareciam aquelas badaladas que tocam quando alguém morre. Ergueu-me muito direita .... alguém morreu, apressou-me a desejar um pensamento ao defunto "paz à sua alma".
Voltou ao seu vício, estavam a crescer muitas ervas daninhas à volta dos morangueiros, comecou a arrancá-las, a terra estava muito macia e elas saíam facilmente. Ao final da tarde quando regressou a casa soube pela vizinha que que tinha sido aquele senhor que tinha quase cem anos que se finara!